Encerrada a consulta pública promovida pelo Ministério da Cultura para reformulação da legislação sobre direitos autorais, alguns impasses permanecem. A reforma, que pretende atuar sobre os direitos do autor, do cidadão e do Estado, divide opiniões.
Pouco mais de 7.800 manifestações foram contabilizadas pelo Ministério da Cultura na consulta para reformulação da legislação sobre direito autoral. Até a semana passada, especialistas, instituições, artistas e cidadãos cadastraram suas propostas via Internet. A reforma, em construção desde 2007, é uma resposta a queixas e críticas frequentes ao Ministério por parte dos cidadãos e dos profissionais das artes. Ainda na gestão de Gilberto Gil, um fórum de discussão foi criado. Por meio dele, oito seminários e 80 reuniões setoriais foram promovidas até 2009. Em 2010, o Governo Federal propôs um anteprojeto levado à apreciação da sociedade.
Contudo, ainda em abril deste ano, representantes da Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes), do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e entidades ligadas ao teatro, à literatura e à música inauguraram um coletivo intitulado Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, cujo objetivo seria fundamentalmente fazer oposição às mudanças pretendidas pelo governo para a lei de direitos autorais. Para Glória Braga, porta-voz do Ecad, o anteprojeto levado à consulta pública prioriza o caráter mercadológico da cultura. "Os direitos exclusivos dos criadores intelectuais passaram a ser meros interesses. Os autores viraram simples produtores de conteúdo".
Segundo José Vaz, coordenador-geral de Gestão Coletiva e Mediação em Direitos Autorais, do Ministério da Cultura, são três os principais enfoques da reforma. O primeiro é o reforço da posição contratual do autor, ou seja, o estímulo à produção e à efetivação de contratos entre os autores e as empresas que investem em suas obras. "Os contratos hoje são, muitas vezes, dispensados ou feitos sem legalidade. Apoiado pela lei, o autor vai poder exigir uma documentação e assim negociar melhor e controlar seus lucros", afirma José Vaz.
O segundo diz respeito aos hábitos dos cidadãos, como a reprografia de livros. Neste caso, o anteprojeto visa flexibilizar a lei de modo que essas práticas cotidianas sejam orientadas à legalidade. "Hoje um professor que queira usar um filme em sala de aula precisa pedir autorização. Isso não é sensato, já que a intenção da exibição é educativa", defende Vaz. A nova proposição prevê ainda a isenção no pagamento de direitos autorais a atividades religiosas e terapêuticas, como as dinâmicas realizadas em hospitais. De acordo com o coordenador, o desenvolvimento de produtos voltados aos portadores de deficiência física também é um viés a ser repensado.
Acesso e regulação
A instituição da licença não voluntária, que confere ao Presidente da República o direito de autorizar, em determinadas situações, o uso de produtos culturais independente da permissão dos autores, foi uma das proposições mais polêmicas do anteprojeto. Ao mesmo tempo em que viabiliza o acesso e a preservação de algumas obras, a concessão desse poder ao governo não é bem vista por alguns.
Para José Vaz, a Cinemateca Brasileira, detentora de um dos maiores acervos audiovisuais da América Latina, é um exemplo de instituição que seria beneficiada pela proposta. "São 200 mil rolos de filmes na Cinemateca e muitos deles se perdem por conta dos obstáculos para a restauração: ou o autor já faleceu ou as famílias não autorizam... Queremos viabilizar isso de forma mais ágil, para que a memória da nossa sociedade permaneça", defende o coordenador.
Gloria Braga, porém, considera que a possível medida seria autoritária: "A licença invade ainda mais os direitos dos autores de decidirem livremente sobre o uso de suas obras. Como se não bastasse, as tais licenças não voluntárias serão alvo de pagamento de direitos ao Poder Público, e não aos autores".
Fiscalização
O terceiro enfoque principal está em definir o papel do Estado no contexto dos direitos autorais. "Em linhas gerais, o comércio de produtos culturais movimenta em torno de 4 a 7% do PIB nacional. Esse é um valor significativo e o Estado deve, portanto, não necessariamente intervir, mas atuar, estar presente nesse setor", argumenta Vaz. Para o Ministério da Cultura, o governo deve instituir uma instância administrativa que atue na fiscalização das entidades que recolhem o pagamento de direitos, como o Ecad, e na resolução de conflitos.
Gloria Braga é enfática ao se opor à medida: "No afã de intervir na gestão de caráter privado das associações de direito autoral, o Ministério da Cultura chama para si o poder de outorgar registro e autorização de funcionamento às entidades, cobrando delas uma série de procedimentos hoje já praticados e fiscalizados por seus associados, únicos e legítimos interessados do bom funcionamento de suas entidades. Enquanto isso, o anteprojeto não cria qualquer penalidade para as empresas de radiodifusão violadoras de direitos e inadimplentes", critica. "Nem a ditadura militar ousou tanto!", chega a comparar.
Em meio à controvérsia, agora que a consulta pública foi finalizada o Ministério da Cultura prevê uma série de procedimentos internos, como a catalogação e a filtragem das propostas, a fim de que, posteriormente, se elabore um documento oficial. Questionado sobre a possibilidade de o processo eleitoral influenciar as mudanças na legislação sobre o tema ou atrasar o processo de aprovação da nova lei, José Vaz pontua: "Não acredito que as eleições cheguem a inviabilizar a reformulação. Os próximos governantes, independente de partidos, não poderão fechar os olhos para essa demanda da sociedade".
Fonte: Caderno 3/ Diário do Nordeste
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