sábado, 7 de maio de 2011

A História do Cangaço em Aurora


De repente no esquisito daquela caatinga enbrabecida, rompeu um grito seco e abafado cheio de terror e medo como um rosnado de bicho quebrando o silêncio sagrado daquele ambiente. Chão de brasa. Sol a pino cozinhando os miolos e o juízo dos valentes sertanejos em seu eito diário.

Pouco depois som de besouros apenas… E um cancão ligeiro em ziguezague cruzara o caminho como que também desorientado estivesse. Logo em seguida, um gemido extremo de moribundo, atravessou os ares escaldantes daquele fim de mundo. Grotões imensos de pedras, costurados por um gracioso emaranhado natural de espinhos. Touceiras enormes de cactáceas. Como se fossem elas, sentinelas da terra que os homens sertanejos insistem tanto em dominá-la há séculos pela vida adentro.Um pequeno lapso de tempo. Um quarto de hora mais ou menos. Seguido de um novo grito. Possivelmente o derradeiro.

Um som ribombeou por todos os lados como um tiro de espigarda a se precipitar entre os rochedos repletos de macambiras, coroa-de-frade, rabo de raposa, mandacarus e xiquexiques. Tudo aquilo estava carregado de estranhamento. Podia-se a partir daquele crucial instante, ouvir nitidamente as pisadas fortes, como a galope de muitos cavalos, entre os arvoredos quebrando os garranchos secos daquele ambiente semi-árido. Os cascos dos animais tiniam como ferro sobre as pedras soltas e os lajedos imensos. Supersticiosos decerto diriam se tratar de caipora em seus desmandos dentro da mata caririense.

Mas, logo ficariam sabendo que estavam errados. Caipora mesmo naquela Aurora dos anos 20 era a vida que se levava naquele sertão adusto perdido e desprezado a se derramar numa sequidão sofrível. Bem ao contrário do rio Salgado, léguas distantes escorrendo tranquilamente na vastidão do vale como uma jararaca gigante e preguiçosa quase cochilando. Aquele sertão era isso: um literal inferno de tanta precisão, perigos e outras contrariedades. Aqui acolá, também o bizarro insistia em compor aquele panorama cheio de segredo, mandinga, misticismo e outros mistérios. Lugar onde o gênero humano, tinha por certa condição atávica, a ligeira necessidade de também ser bicho na busca incessante de também sobreviver a desdita, o sofrimento e as injustiças.

Eis o sertão. Uma extensão do mundo tetricamente abandonado pelos poderosos aliados do poder central. O sertão era uma ficção posta no mapa simplesmente para fechar uma laguna espacial e geográfica. Do outro lado, o fértil vale que descambava para o pé da serra tinha lá seus donos e seus negócios enigmáticos. Coronéis indolentes do latifúndio. Velhacoutos de diversos grupos de jagunços e bandoleiros sanguinolentos. Bandidos de toda espécie. Criminosos da pior índole. Péssimas criaturas, cuja definição de gente e de cristão era no mínimo uma afirmação temerária.

Naquele dia quase sonolento de uma sexta-feira a caatinga seca quebrara seu silêncio característico. Momento em que o imponderável da vida parecia se aninhar nas mãos calejadas dos homens sertanejos. Tanto que ali mesmo naquele exato instante, se tornou possível ouvir muitas vozes onde até pouco, a solidão reinava pelos quatro cantos. Os cangaceiros mais uma vez se perderam nas traiçoeiras bibocas do mar do sertão que eles pouco ou quase nada conheciam pelas redondezas.

Eram jagunços perigosos… Rasgando o oco do mundo. Demônios terrenos em carne e osso. Talvez por isso os bichos da mata também estivessem em pavorosa correria. Mas por sorte, os bandoleiros atingiram o caminho certo. Mas sem antes, friamente assassinarem mais um cristão inocente. Um pobre guia: Seria Zé Alves, o jovem leiteiro do Jatobá, sangrado barbaramente nos rincões inóspitos da Catingueira? Não. Este crime ficaria para quase um mês depois. Quando Massilon se separaria de Lampião, não no riacho do sangue na fazenda Letrado como disseram. Mas de fato, no entroncamento dos sítios Brandão e Gerimum da Aurora. Covardia a qual os seus parentes da família Arara, jamais esqueceria…

Seria o proprietário do sítio Caboclo, vitimado por ter se negado a doar um boi para o banquete dos criminosos? Não. Este havia sido muito antes pela jagunçada dali mesmo, da Ipueiras e Missão Velha. Para aquela alma em seu martírio ainda agora existe um grande cruzeiro de Penitentes no local exato onde a vítima foi assassinada.

Seria o velho Catita que quando novo havia experimentado igualmente a vida de jagunço, mas se arrependera? Talvez, demasiado tarde. Lá pras bandas da Malhada Vermelha… Mata fechada onde nenhum caminho por lá passava. Mais uma cruz seria fincada na rês do chão. A pilhagem e o crime rondavam assim, a boa gente dos sertões, como um cão danado, enraivecido, mordendo tudo. Viver e sobreviver nos sertões naqueles tempos era uma aventura de valentes. Por isso a frase Euclidiana que virou máxima: “O sertanejo é antes de tudo um forte”.

De tal sorte que, a justiça também era ali, por uma questão de definição prática, apenas mais uma das tantas vítimas daquele sistema desumano. E de certa forma, até hoje a velha história ainda continua…

Mas que diacho será aquilo. Que zuada dos seiscentos diabos, meu Deus!

Resmungou o vaqueiro de Zé Cardoso e Izaías Arruda – respeitado coronel prefeito, filho de Aurora. Pensativo o velho tangedor de gado seguia montado em seu burrico. Caminhava a passos lentos, buscando uma bezerra desgarrada. Andara naquele dia léguas tiranas e nada… Até se deparar finalmente com aquela cena. Sentira medo. Porém de certo modo, a curiosidade o dominara. Por fim se acalmou quando viu que era Massilon Leite – o cangaceiro – esperto e sanguinolento. Aventureiro potiguar-paraibano que sonhara enriquecer num passo de mágica. Trilhando os rumos do cangaço pelo aquele mundo adentro. Pra ele Mossoró era uma mina fácil. Uma questão de tempo, tão somente. Estava ali de volta as terras da Aurora com o seu pequeno bando de celerados. Não estava ali à toa. Tinha lá o seu propósito sob a alcunha de Mossoró.

Naquele dia cinzento pisava de novo com certa pressa o solo aurorense. Riscava ele com seu bando de facínoras intrépidos agora o descampado da mata solitária d’Aurora de Cândido do Pavão. Trazia, além de um sorriso largo no rosto, alforjes e embornais cheios de dinheiro e ouro. Produto da rapina que realizou dias antes pras bandas da Paraíba e do Rio Grande.

Sol a pino. Início do mês de maio – ano cangaceiro de 1927. Como que combinado, todo o bando em ato contínuo passava o lenço encardido sobre a testa como em continência. Não tinham sede. Tinham o calor dos trópicos. Há pouco passaram por um farto açude. Água boa, terra boa…

Depois do sobressalto e do medo do desconhecido, o vaqueiro agora estava um tanto aliviado. Pois viu que era Massilon – velho conhecido de outros tempos. Mesmo de relance, deu até para lobrigar alguns outros bandoleiros de casa, filhos da terra das bandas do riacho das Antas.

- Bom dia Massilon! Como você voltou cedo… o combinado num era pro mês que entra? – Disse o vaqueiro com certa intimidade.

- De fato Seu Vicente, nós havia acertado com Zé Cardoso e o coroné pro começo do mês de julho. Mas sê sabe como é, a gente num domina os acontecimentos. – Continuou:

- Por isso tô aqui. E também já sei que o capitão Virgulino já tá chegando aí por perto. Tá pras bandas das porteiras ou nas terras de Antoin da Piçarra dando uma descansada -

Explicou Massilon sentado de lado sobre a lua da sela, como que descansando as nádegas da longa viagem.

- É bom prevenir o capitão. Vi dizer que os macacos de Arlindo Rocha e Mané Neto estão fechando o cerco por aquelas bandas. É bom num facilitar. Aqui na Aurora estamos mais protegidos sob os cuidados do coroné Arruda.

Depois emendou: – Mas seu Vicente, me diga, onde está seu Zé Cardoso? –Perguntou:

- Trago a encomenda do coroné Izaías Arruda e tenho um bilhete de Décio Holanda sobre aquele assunto de Mossoró. Neste instante o vaqueiro do Diamante pareceu que tinha fogos nos olhos.

- Ora Massilon, você devia ter mandado dizer antes pelo pessoal das Antas. Zé Cardoso foi pra Missão Véia inda hoje no trem da feira pra tratar de assunto particular com o coroné Izaías. Depois a gente precisa de pagamento né. Disse ele que tinha pressa e tinha urgência. O vaqueiro continuou na sua longa explicação:

- Mas pelo jeito a amanhã cedo já deverá está de volta pelas Ipueiras. – explicou.

- Mas me diga onde vosmicê quer se arranchar? Aqui no Diamante na minha morada ou lá na casa das Ipueiras? Quis saber o vaqueiro. Pensativo Massilon demorou um pouco com o olhar enigmático voltado para o norte. Depois respondeu de chofre:

- Seu Vicente agradeço a sua hospitalidade. Mas quero ficar com meus homens até Zé Cardoso me trazer o coroné, lá na gruta da serra dos Cantins se o amigo não fizer caso pela escolha. – disse ele.

- O amigo acaso podendo me dispor do necessário é lá que eu queria me acoitar pelo tempo devido que for. Tenho coisas importantes para o coroné e naquele esconderijo de Lampião me sinto mais seguro. Sê sabe como é né? Munição e arma nós tem pra qualquer precisão.

- Bom, se o amigo deseja assim. Assim será feito. O resto pode deixar por minha conta.

Após este diálogo o vaqueiro que vinha do Coxá acenou para o resto do bando. Dizendo alto:

- Cambada vamo então lá pra casa para gente cumer qualquer coisa, pois as caras de vocês num nega. Vocês tão é lascado de fome e de sede num é?

Em seguida trocou algumas palavras com os jagunços do bando de Izaías Arruda que vez por outra serviam a Massilon nas suas incursões regionais. Eram eles: Zé Lúcio, José Roque, Zé Coco. Depois de comerem na casa do vaqueiro, Massilon com seu bando seguiu para o esconderijo da serra dos Cantins a cerca de apenas meia légua da Ipueiras onde aguardaria o coronel e Lampião com relativa segurança.

Era inegável. Ele temia alguma perseguição pela pilhagem que praticara dias antes. Com toda aquela dinheirama obtida nos últimos saques, Massilon repartiria com o coronel Izaías Arruda. Este era o trato – a partilha seria na base do meio a meio. E de quebra, por conta desse lucro aparentemente fácil tentaria convencer, o arguto Lampião para a sonhada empreitada da invasão de Mossoró. Seria o xeque mate para subir de vez na vida.

Dias depois, num final de tarde na casa grande da Fazenda Ipueiras – propriedade do coronel Izaías Arruda – arrendada ao seu cunhado Zé Cardoso, ocorreria o célebre encontro com vistas a traçar as estratégias para o ataque de Mossoró no Rio Grande do Norte. Da qual participaram, além de Massilon, o cangaceiro aurorense Júlio Porto que servia à Décio Holanda do Pereiro, Zé Cardoso, Lampião, Sabino e o coronel Izaías Arruda, este último como o grande patrocinador da empreitada. Igualmente, o principal responsável pelo convencimento de Virgulino que a princípio não concordou em participar do acerto, por conta do seu total desconhecimento da geografia do lugar e a ausência de coiteiros que o auxiliasse. Não costumava fugir do seu modus operandi de agir. Nestas coisas certas mudanças nunca são bem-vindas porque não surtem efeito positivo.

Não diretamente na sala de jantar onde a trama acontecia, estavam na sala da frente o vaqueiro Miguel Saraiva e o jovem Asa Branca, que mais tarde ingressaria no bando de Lampião com destino à Mossoró. Por conta da sua pouca idade, 15 anos, Asa Branca inicialmente foi recusado por Lampião, pois segundo ele, ‘não trabalhava com menino’. Não pela a insistência do jovem e do próprio Zé Cardoso, Lampião terminou aquiescendo após assistir na frente da Casa Grande uma sessão de tiro ao alvo realizada por Asa Branca. Ficou maravilhado e até confidencio para o coronel que o menino era mais um bom de vera…

“Este é igual uma Asa Branca, a gente só se ver a marca quando ela voa e estica as assas”, disse o capitão baixinho ao coiteiro-amigo Izaías Arruda.

Era ele, o tal menino, um atirador dos mais exímios. Um caçador renomado no sítio.. Tanto que conseguia a proeza de não errar um só tiro, mesmo os de olhos vedados(mirava antes e em seguida pedia para vedar seus olhos) como também os que foram executados de costas. Naquele final de tarde começava a ser planejada nos seus mínimos detalhes a empreitada para a invasão de Mossoró. Um projeto ousado, cujos riscos sequer foram devidamente avaliados. Aquilo de certa maneira intrigou o rei do cangaço.

Um investimento de curto prazo que ajudara a cegar os seus protagonistas. Toda trama foi arquitetada na fazenda Ipueiras no município de Aurora no Cariri cearense. Mas a história não terminaria ali. Depois do malogro, Aurora seria novamente palco de uma nova saga cangaceira, além de ponto culminante da fantástica e polêmica perseguição e marcha de Lampião e seu bando na direção da fazenda Ipueiras de Zé Cardoso e o coronel Izaías Arruda.

Sem ela, qualquer narrativa sobre o reio do Cangaço estará fatalmente comprometida, posto que não estará completa.

José Cícero
Professor e Pesquisador do Cangaço.
Secretário de Cultura de Aurora-CE.

Fonte: Chapada do Araripe/ http://www.crato.org/chapadadoararipe/

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