quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Caldeirão da Santa Cruz: Um passado revisitado


Vinte anos após a primeira edição de "Caldeirão", o historiador Régis Lopes lança versão revista e ampliada do livro sobre a comunidade

Mais do que reforçar a preservação a memória, tratava-se de uma dívida pessoal, aliada ao aniversário de duas décadas da publicação. A partir dessas inquietações, o historiador Régis Lopes decidiu lançar a segunda edição do livro "Caldeirão - estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades", sobre a trajetória da comunidade homônima criada em 1926, na região do Cariri.

A nova edição, lançada pelo Instituto Frei Tito, é uma versão revista e ampliada da obra, publicada originalmente em 1991 e baseada em depoimentos de pessoas ligadas à história da comunidade. "Este ano, fiz uma visita ao Caldeirão e achei que os 20 anos não poderiam passar em branco. Tenho uma dívida com as pessoas que abriram suas casas e suas memórias", conta Régis Lopes.

O lançamento acontece hoje, às 17 horas, no MAUC/ museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. "Além do texto original, acrescentei um artigo que escrevi em 1998, sobre memória oral", explica Lopes. Entre 1926 e 1936, a partir de um cotidiano baseado no trabalho, na oração e na fraternidade, o Caldeirão representou lugar de acolhimento e de nova vida para muitas pessoas. Em 1936, a polícia organizou uma operação para destruir a comunidade e expulsar os sertanejos, diante do medo das elites em ver configurada ali uma "nova Canudos" - junto à possibilidade de outra realidade sócio-econômica que ela representava.

Não por acaso, a primeira edição do livro esgotou-se rapidamente. "Nesse período, muitas pessoas me perguntaram quando sairia a segunda. Acho que o motivo da procura é pelo fato de o livro trazer depoimentos nos quais os entrevistados contam aquilo que viveram no Caldeirão", analisa Lopes.

A demora em reeditar "Caldeirão" foi decorrente das seguidas ocupações profissionais. "Quando lancei a primeira edição do livro, ainda era estudante de graduação. Depois veio o mestrado, o doutorado, comecei a dar aula. Acabei ficando sem tempo", recorda Lopes. O projeto, porém, persistiu na gaveta. "Todas as pessoas com quem conversei à época já faleceram. Sentia-me na obrigação de organizar a segunda edição, porque é uma maneira de homenageá-las", avalia.

Passado

No início das investigações, Lopes coletou matérias e informações sobre o Caldeirão publicadas em jornais e livros. "Era a "versão oficial". Ao longo do curso de História, quando aprendi as metodologias de pesquisa, decidi ir até Juazeiro do Norte procurar pessoas que tinham vivido a experiência", recorda o autor.

Em Juazeiro e no Crato, Lopes conversou com uma dezena de pessoas e acumulou cerca de 30 horas de gravações. "Fiz varias entrevistas, com algumas das fontes acabei desenvolvendo uma relação de amizade, porque voltava aos lugares", lembra. "Nesse sentido, meu trabalho foi muito mais o de organizador dessas narrativas do que o de autor" complementa.

Entre as fontes consultadas, cinco tinham vivido no Caldeirão. "As pessoas iam para lá por diferentes motivos. O Senhor João Silva, por exemplo, foi por causa do pai, que trabalhava na comunidade. Já dona Marina Gurgel foi em romaria. Falei ainda com dona Maria de Maio, que nasceu no Caldeirão", revela Lopes.

Do Sr. Eleutério Tavares, o pesquisador ouviu que "relembrar o passado é sofrer duas vezes". Filho de Severino Tavares, beato que morreu num confronto com a polícia na Serra do Araripe, coube a Eleutério encontrar e enterrar o corpo do pai. "São vivências diferentes em relação ao mesmo assunto. Portanto, é como se a história fosse contada cinco vezes".

Entre essas falas, Lopes destacam algumas que lhe marcaram mais. "Dona Marina, por exemplo, disse algo que é central para entender o Caldeirão. Ela definiu a comunidade como um lugar onde "tudo era de todos e nada era de ninguém". Enquanto seu João Silva, ao responder minha pergunta sobre por que as pessoas iam ao Caldeirão, falou de maneira bonita que "todo mundo gosta de lugar onde só tenha agrado". Ou seja, era uma comunidade de acolhimento".

Ainda sobre os depoimentos, Lopes ressalta outra fala de seu Eleutério Tavares. "Ele disse que não gostaria de falar porque "quem escreve livro mente muito". Isso significava que havia outra versão da história. Consegui ver muito isso nesses depoimentos, gravar a versão que tinha sido abafada. São pessoas que foram perseguidas, taxadas de fanáticas religiosas, cangaceiras, bandidas", analisa Lopes.

À época da pesquisa, o tema ainda era difícil de ser abordado. "Uma outra fala que me tocou muito, de Seu João Silva, que lamentou o governo ter ´destruído uma coisa boa como o Caldeirão e, ao mesmo tempo, ter criado o campo de concentração, uma coisa ruim´. Essa era maneira como se referiam ao lugar onde prendiam os flagelados da seca de 1932", recorda.
Assim, mais do que um registro de eventos históricos do Ceará, "Caldeirão" configura-se como um lembrete importante para evitar os erros do passado. "Trata-se da memória que não pôde ser publicada, a do massacre", lamenta Lopes.
Livro
Caldeirão
Régis Lopes


Fonte: Caderno Regional/ Diário do Nordeste

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